terça-feira, 23 de julho de 2019

[LITERATURA] – Entrevista com Fabio Shiva

Olá, leitor do Cantinho da Traça!

Hoje estamos aqui para dar continuidade ao perfil do autor Fábio Shiva, que concedeu uma entrevista escrita ao blog falando um pouco de sua carreira enquanto escritor, de sua obra e de planos.

Para isso, a entrevista foi dividida em três partes: Histórico, que fala um pouco de como ele iniciou a carreira de escritor; Obra, na qual ele fala de suas obras até o momento; Literatura, parte em que Shiva nos conta um pouco de sua experiência literária e de conceitos pessoais que o norteiam.

Espero que gostem do que tem por vir.

Divirtam-se!

                                                                           ***

PARTE 1: HISTÓRICO


Cantinho da Traça: O que o inspirou a escrever?

Shiva:  Lembro claramente do momento em que descobri que queria ser um escritor. Eu tinha 11 anos e havia acabado de arrumar na estante os tesouros de minha pequena coleção recém-iniciada: alguns exemplares de Agatha Christie, outros de José de Alencar, mais um ou dois com as aventuras de Sherlock Holmes e uma dúzia de episódios da série de ficção científica Perry Rhodan. Lembro que fiquei por um longo momento contemplando aqueles livros tão queridos, sentindo muita gratidão pelas tantas emoções que eles haviam me proporcionado, e então decidi que sempre iria querer fazer parte daquela magia, daquele encantamento. Eu me inspirei a escrever motivado pela paixão da leitura.



Cantinho da Traça: Por que caminho decidiu começar a escrever?

Shiva: Comecei escrevendo letras para as músicas que eu fazia junto com meu irmão Fabrício, quando eu tinha 7 ou 8 anos. Por essa época escrevi também meus primeiros poemas. Então comecei pelo caminho duplo da Música e da Poesia. 


Cantinho da Traça: Por que escolher escrever literatura policial?

Shiva: Minha motivação maior sempre foi escrever histórias que eu gostaria de ler. Sempre fui um grande apaixonado pelo romance policial, então meu primeiro livro, “O Sincronicídio”, lançado em 2013 pela Caligo Editora, foi ao mesmo tempo uma homenagem e um mergulho nesse universo da literatura policial, com referências às principais vertentes do gênero, desde o clássico mistério do “whodunit” às truculentas cenas “noir”, passando pela escatologia contemporânea e até pelo tradicional “mistério do quarto fechado”. Um detalhe curioso é que eu acreditava que seria um escritor de romances policiais para o resto da minha vida. Contudo venho descobrindo que a Literatura é acima de tudo um exercício existencial, que propõe suas próprias demandas. Hoje procuro mais “ouvir o canto da Musa” que determinar eu mesmo o caminho que devo seguir como escritor.


Cantinho da Traça: Quando e como começou a escrever contos?

Shiva: Escrevi meu primeiro conto aos 14 anos. Chamava-se “Uma questão de princípios” e era sobre um homem de meia idade que assassinava um adolescente após uma discussão fútil ocorrida no Metrô. Infelizmente não sei o que aconteceu com esse texto, perdeu-se no tempo. Por isso considero minha estreia como contista como tendo ocorrido no livro duplo “Labirinto Circular“ / “Isso Tudo É Muito Raro", lançado em 2016 pela Cogito Editora. Esse livro teve uma origem interessante, pois nasceu da dificuldade que encontrei para publicar meu primeiro romance. Fiquei quatro anos escrevendo “O Sincronicídio”, depois levei mais dois anos buscando uma editora. Já estava me conformando em não ser publicado, quando levei uma bronca daquelas de uma amiga muito querida, Elda Araújo, que foi uma de minhas maiores incentivadoras. Ela falou algo assim: “Então você quer ser que nem Van Gogh, morrer sem que ninguém conheça o seu trabalho?” Isso despertou algo dentro de mim, acho que me arrancou da zona de conforto. Decidi escrever contos para participar de antologias, para começar a me inserir no mercado, e acabei reunindo esses doze em um livro duplo, desses em que a capa de um é a contracapa do outro. E com isso acho que liberei alguma energia interna, pois, quando menos esperava, meu romance acabou sendo publicado pela Caligo.
  





PARTE 2: OBRA


Cantinho da Traça: Pode nos falar mais sobre suas obras?

Shiva:  Até o momento publiquei dois romances. Além de “O Sincronicídio”, lancei agora em 2019 “Favela Gótica”, pela Verlidelas Editora. É basicamente uma transposição da literatura gótica, que é recheada de monstros como mortos-vivos, lobisomens e vampiros, para o universo temático de uma favela brasileira. Considero uma obra bem diferente, que poderíamos classificar como uma “distopia fantástica”, onde a trama policial aparece de forma secundária. Como já mencionei, publiquei também um livro de contos. Fora esses, atuei como organizador de um livro coletivo muito interessante, chamado “Escritores Perguntam, Escritores Respondem", um bate-papo sobre literatura entre doze escritores de vários cantos do Brasil e dos estilos mais diversos. Essa foi uma experiência tão marcante que agora está sendo revivida na forma de uma série de vídeos muito legais do site MundoEscrito. Organizei duas antologias poéticas: “Doce Poesia Doce”, junto com Ivan de Almeida (que também organizou o “Escritores...”), publicado pela Cogito em 2018, e “Poesia de Botão”, junto com Sergio Carmach, em uma bela edição que será lançada brevemente pela Verlidelas. Tive ainda a oportunidade maravilhosa de escrever, junto com meu irmão Fabrício Barretto, o roteiro do filme “ANUNNAKI– Mensageiros do Vento”, a primeira ópera rock em animação produzida no Brasil, lançada em 2016, além do livro “MANIFESTO – Mensageiros do Vento”.


Cantinho da Traça: Quais são seus planos para o futuro na literatura?

Shiva: Rapaz, são tantos, que só peço a Deus saúde e disposição para escrever tantos livros! Atualmente estou escrevendo uma espécie de “romance de não ficção” contando de forma lúdica parte da história da banda de heavy metal Imago Mortis. E também estou preparando com muito carinho um livro infantil: “Meditação para Crianças”.



Cantinho da Traça: Li “O Sincronicídio”, gostei muito e terminei o livro com uma pergunta que acho que todos aqueles que o leram se fazem: haverá continuação?

Shiva: Gratidão por sua leitura e por essa energia boa! Na verdade, a continuação de “O Sincronicídio” surgiu antes da história que é ali apresentada. Eu comecei escrevendo um outro livro, chamado “A Mais Tocada de Todos os Tempos”, mas fui progressivamente reescrevendo e recuando um pouco mais na história a cada vez, até que acabei caindo em outro livro! Eu pretendo sim retomar essa trama algum dia, mas no momento isso não é prioridade.  Foi um livro muito divertido de se escrever, mas foi também extremamente trabalhoso. Por agora, sinto vontade de experimentar coisas diferentes.



Júlio Cortázar


Cantinho da Traça: Percebo em suas obras um cunho bastante social que, ao meu ver, funciona como uma espécie de assinatura sua. Pode nos falar mais sobre isso?

Shiva: Recentemente travei contato com as maravilhosas “Aulas de Literatura” do Julio Cortázar, onde ele estabeleceu três etapas distintas em sua própria caminhada literária, com as quais me identifiquei muitíssimo. O primeiro momento, que ele chama de “estético”, é marcado pela busca de uma “arte pela arte”, pela construção de uma narrativa esmerada e repleta de qualidades literárias. Essa etapa foi determinante em meus primeiros escritos e em boa parte da estruturação de “O Sincronicídio”. O segundo momento é batizado como “histórico”, e define uma conscientização, por parte do autor, de que sua literatura existe em um contexto social, e que possui responsabilidades sociais, por assim dizer. Penso que a concepção mais profunda de “O Sincronicídio” e, principalmente, de “Favela Gótica”, foi marcada pela percepção dessa responsabilidade. Nunca desejei escrever apenas por escrever, para ocupar de forma agradável as horas ociosas do leitor. Acredito que a literatura deve entreter, deve ser interessante e divertida, mas a diversão jamais deve ser um fim em si mesma, a meta maior da literatura. Para isso já temos toda a indústria cultural. Literatura é arte, e a arte deve servir para melhorar o homem de alguma forma, libertá-lo de suas amarras psíquicas e existenciais, ajudá-lo a transcender sua mera condição animal. E é aí que chegamos ao terceiro momento descrito por Cortázar, que ele chama de “metafísico”. Ele usou outras palavras para descrever algo que hoje representa para mim o cerne de minha motivação como escritor: a literatura deve servir à Verdade. Por “Verdade”, entendo aquilo que é real, em oposição ao que é ilusório. É muito difícil falar sobre esses assuntos utilizando uma linguagem comum. Para isso, hoje acredito, é que existe a literatura.


Cantinho da Traça: O que mais você gosta em sua obra e o que acha que poderia mudar?

Shiva: Gosto muito do fato de que tento não me repetir. E poderia mudar tudo, sempre. Sinto que escrever é um aprendizado infinito. Não consigo imaginar algum momento no futuro em que eu não tenha muitíssimo a aprender.


PARTE 3 – LITERATURA

Cantinho da Traça: Já pensou em parar de escrever? Se sim, como foi? O que o manteve escrevendo?

Shiva: Sim, pensei em parar, e foi terrível! E é justamente isso o que me mantém escrevendo. Quando por algum motivo eu encerro o dia sem ter escrito, sinto-me fracassando existencialmente, traindo meus valores mais sagrados. A Literatura é a minha religião.



Cantinho da Traça: Que dificuldades você enfrenta em seu processo de escrita? Como transcende?

Shiva: Já enfrentei e enfrento as dificuldades mais comuns envolvidas no processo de escrever: a procrastinação, o bloqueio, a preguiça pura e simplesmente, os becos aparentemente sem saída. Acredito que a transcendência vem da “lição da água”, no sentido que as artes marciais e a espiritualidade dão a essa expressão: fluir, ser flexível e não rígido, buscar sempre o caminho de menor resistência, a posição mais humilde. Daí vêm a força e a grandeza da água. As dificuldades fazem parte de qualquer caminho que valha a pena, penso que devemos reconhecê-las como parte do processo, não ficar brigando muito com isso. Como diria nosso amado Jung, “tudo a que se resiste, persiste”.


Cantinho da Traça: Como você acha que um escritor deve ler?

Shiva: Como um aprendiz de feiticeiro, sempre tentando desvendar “como o truque foi feito”. Alguns livros devem ser lidos duas, três vezes ou mais. Contudo esse olhar mais técnico nunca deve suprimir o encantamento. Devemos aprender como o truque é feito e, ao mesmo tempo, continuar acreditando na magia.


Cantinho da Traça: Que dicas você daria a outras pessoas que estão pensando em começar a escrever ou que já escrevem?

Shiva: Se você sente um chamado real para escrever, é porque existe algo em você que precisa ser expresso, para o bem do mundo. Tente ouvir essa voz interna, que está querendo se expressar. Siga essa voz. Acredite nela.


Cantinho da Traça: Que orientações você dá aos autores que estão pensando em publicar?

Shiva: Hoje é muito fácil publicar, seja de forma independente ou através de uma das inúmeras editoras sob demanda que existem no mercado. Publicar digitalmente, então, é mais fácil ainda. Então o ato da publicação, em si, possui pouca relevância atualmente. Por isso minha sugestão é: não se afobe para publicar o primeiro texto que você escreveu. Pesquise, estude, observe. Isso ajudará sua intuição a decidir quando e como agir.





Cantinho da Traça: Poderia descrever um pouco como funciona seu processo criativo?


Shiva: Posso resumir meu processo criativo em uma frase, retirada das escrituras védicas: “nada do que faço sou eu quem faz”. Acredito que o artista é, na bela definição de Ezra Pound, a “antena da raça”. Então meu processo consiste em principalmente captar, escutar. Embora eu tenha consciência de que sou eu que escrevo os meus textos, não me sinto realmente o autor deles. Cada vez mais, tenho uma sensação de escrever como um ato de magia, de materialização no aqui e agora de algo que já existia em alguma outra dimensão. Percebo cada história como uma espécie de novelo de lã, e escrever é conseguir segurar a ponta desse novelo e vir puxando, lentamente, palavra por palavra, com cuidado para não partir o fio. É um processo cansativo, que exige muita concentração. Às vezes o fio se rompe e é preciso começar tudo de novo. Mas às vezes conseguimos desenrolar o novelo inteiro, e há muita felicidade nesses momentos. Depois vem a parte técnica do processo, que é burilar o texto, revisar, cortar palavras. Mas o parto de um texto é sempre algo que me enche de reverência, como um ato sagrado.



Cantinho da Traça: Pode nos falar sobre sua experiência com a Editora Verlidelas?


Shiva: Só tenho elogios e agradecimentos a fazer. A Verlidelas é uma editora pequena, mas com um coração gigante! Iniciou suas atividades há pouco tempo, mas já lançou uma boa quantidade de excelentes trabalhos, que primam pela qualidade em cada detalhe.  E o melhor de tudo é que se trata de uma Editora de verdade, que possibilita ao autor publicar seu livro sem ter que custear a edição. Não poderia ser de outro modo, tendo à frente o querido amigo Sergio Carmach, que admiro igualmente como escritor e como ser humano. Longa vida à Verlidelas!

quarta-feira, 17 de julho de 2019

[PENSAMENTOS E DICAS] – Oscar Wilde

"Coerência é a virtude dos que não têm imaginação".                                                         
                                           Oscar Wilde (1854 - 1900)

terça-feira, 16 de julho de 2019

[LITERATURA] – O que é escrever bem para você?

Olá, acompanhantes do Cantinho da Traça, estou aqui para mais uma postagem sobre Literatura.

Hoje quero falar um pouco sobre o que acredito que seja escrever bem. 

Outro dia, participei de três vídeos produzidos pelo site Mudo Escrito, cada um com uma pergunta sendo respondida. Algo em torno de onze autores responderam cada questão em aproximadamente trinta segundos. Uma das perguntas foi exatamente a do título deste post.

Problema polêmico, acredito. Porque escrever bem, apesar de ter o amparo de toda a técnica possível (e deve ter), ainda é para mim uma questão subjetiva e muito relativa. Isso porque há dois pontos de vista: o de quem produz o texto e o de quem o lê.

No vídeo, a transcrição do que respondi saiu assim:

"Escrever bem, para mim, é ser mais do que meramente técnico. A técnica precisa ser conhecida, mas o autor precisa colocar as suas vísceras, a sua alma; precisa colocar a sua emoção naquele texto – e não estar defendendo argumentos, não estar defendendo ideias que ele, de fato, não acredita. Então, escrever bem é, antes de tudo, ser honesto com o leitor." (fonte: https://www.facebook.com/watch/?v=2342982599306243)




Sou psicólogo, e uma das coisas que mais vi na Universidade foi o fato de que a percepção de uma pessoa sobre alguma coisa não necessariamente corresponderá à visão de outro indivíduo. A subjetividade precisa ser respeitada, porque o que estrutura a percepção, os gostos, as formas como se vivencia uma experiência, varia muito de pessoa a pessoa. Isso tem a ver com muitos fatores, dentre eles os sociais, culturais, familiares, ambientais.

A técnica para um escritor é muito importante, e não acho que se deva abrir mão de seu estudo e aprimoramento constante. Sou meio a rodaniano nesse aspecto (Auguste Rodin acreditava que uma obra nunca está acabada, de forma que  sua arte sempre tinha um quê de incompletude, de inacabado). Com ela, podemos tornar os textos mais belos, mais estéticos, mais aceitáveis e compreensíveis. Podemos conferir mais impacto a eles.

Entretanto, discordo do argumento que escrever limite-se ou dependa exclusivamente disso. Já li textos excelentemente técnicos, belíssimos, muito bem escritos, mas sem alma, sem essência do autor (falo, no caso, de uma mutilação dessa essência, uma impressão de que o autor deixou de colocar algo ali porque a técnica, ou o uso compulsivo dela, de alguma forma o proibiu, ou ele achou que o proibiu).

Tenho visto um bocado de gente vomitando regras de que se deve fazer isso ou aquilo, de que se deve escrever isso e não aquilo. Professam "regras" calcadas naquilo que eles(as) mesmos(as) acreditam que é certo e tomam como verdade universal. Se não são seguidos(as) nos mínimos detalhes, ou se o que leem não abarca aquilo que acreditam ou "defendem" (entre aspas porque nem sempre defendem de fato, às vezes fingem que defendem para fazer um bom nome em meio público - tema de outro post futuro, quem sabe). Dessa postura surgem alguns problemas que comentarei em outros posts, mas que nesse momento basta saber que existe.




Muitos têm consciência de que uma técnica é aplicável em alguns momentos e em outros, descartável. Sabem que há limites. E sabem que há algo além da técnica. Nos textos dessas pessoas é possível encontrar muito de sua essência, e menos "mecanicidade".

A meu ver, de simples e imperfeito mortal, as técnicas são apenas  instrumentos, ferramentas que o autor pode usar para que seu trabalho fique melhor, mais profissional. Um bom emprego delas pode tornar um texto inesquecível.

Mas, antes de tudo isso, é preciso colocar-se no texto. E quando falo colocar-se, me refiro a emoção, visceralidade, alma. Há coisas que não podem ser sacrificadas em nome da técnica em um texto literário. Se pego um autor meramente técnico para ler, é bem provável que tenha dificuldades para terminar de explorar a obra dele. Aos meus olhos, explorar um texto meramente técnico é como comer carne seca e sem sal, insosso.

Quando isso é feito, quando se coloca de forma franca, sem usar subterfúgios da técnica para se ocultar, mas utilizando-a para aprimorar a qualidade do texto, ele se torna "honesto" com o leitor. E, a meu ver, faz jus à arte da literária.

Pode parecer um bocado de abobrinha o que escrevi aqui, e talvez seja mesmo. Mas essa é minha forma de ver a produção literária. Não quero delongar aqui, apenas refletir um pouco. Apenas opinar contra qualquer tipo de ditadura metodológica ou discurso inflexível.

Há um lugar para a lógica na literatura. Mas há, também, para o coração. A medida dos dois ingredientes é uma marca especial de cada autor. Se falta, porém, um dos dois, o texto perde a graça aos meus olhos. Tal como carne seca sem sal ou sal sem carne seca.

Grande abraço,

MM



sábado, 13 de julho de 2019

[O AUTOR] – A Alameda dos Algodões Flutuantes – Mogg Mester

Olá, preciosos acompanhantes do Cantinho da Traça, estou aqui hoje para falar um pouco da obra que tenho publicada, a mesma do título desta postagem: A Alameda dos Algodões Flutuantes.

Esta obra é uma antologia de contos inspirada por alguns autores nacionais a quem muito aprecio. Dois deles em específico: Lygia Fagundes Telles e Fernando Sabino. Claro, há outros contos e autores que me inspiraram, mas os dois mestres acima foram os principais. 

Quero ressaltar que contos com atmosfera non sense, assim como músicas (aqui incluam as músicas do maior cantor nacional, para mim, Raul Seixas), sempre me atraíram. Melhor, me fascinaram. Na escola secundarista, quando a professora nos mandavas ler trechos de contos, eu ficava "viajando na maionese", estupefato com as produções nacionais. 

Algumas delas me marcaram tanto que passei a desejar produzir algo das suas atmosferas absurdas - porque para mim a vida é absurda -, quando decidi começar a escrever. Esbocei uma tentativa ridícula aos onze anos, mas desisti porque não soube lidar com as chacotas de dois parentes meus.



Aos dezoito anos, ao passar no vestibular para Medicina Veterinária, comecei a ousar, e após escrever algumas poesias ridículas (a maior parte hoje não mais existe), já escrevia pequenos contos - que depois viraram papel picado e já não existem também -, em um caderninho meu. O mais curioso é que as ideias vinham como entes vivos que subiam à superfície de minha consciência através de um porejamento lento. Aí, então, eu vomitava tudo no papel, de forma catártica, e depois jogava fora.

O tempo passou e vieram outras coisas. Esqueci a literatura e essas divagações por algum tempo. Foi quando, aos 25 anos conheci uma pessoa que me deu uma resposta a perguntas que eu muito me fazia: Por que gosto tanto de vilões? É patológico?

Essa mulher, hoje já morta, perguntou-me se eu torcia pelos vilões na vida real e eu neguei. Perguntou novamente, e eu neguei outra vez. Ela me respondeu: " Acho que isso tem algo a ver com seu senso estético de mundo. Acho que você tem um escritor reprimido dentro de você". 

Ah, a anima! Fabulosa essência inconsciente que se manifesta na forma de mulher (para o homem)!

Comecei a escrever depois disso. Iniciei pela inacabada obra (mas não morta, ela um dia voltará, mesmo que seja por e-book) A Auriflama do Caos, exatamente porque era o que eu mais tinha facilidade de escrever: temas de RPG. Eu tinha muito contato, e dominava alguma coisa, por isso comecei por aí.



Anos se passaram e eu comecei a sentir que queria escrever algo além de fantasia medieval. Foi quando me lembrei dos contos de Fagundes Telles (minha musa brasileira da literatura) e Sabino (pessoal, esse camarada tem cada obra...), lidos anos antes. A atmosfera do absurdo voltou a pinicar por trás de minhas orelhas.

Contos como "O Homem Nu" (Sabino), "A Caçada" (Fagundes Telles), "O Homem de Cabeça de Papelão" (João do Rio), "O Homem do Furo na Mão" (Ignácio de Loyola Brandão), dentre outros, alicerçaram meu desejo por escrever textos com a mesma essência. Eu amo a literatura do estranho.

Iniciei então, em 2012, uma antologia sem prazo para terminar. Inspirado em mafumeiras que existiam próximas do local onde eu trabalhava (hoje, absurdamente mortas pela prefeitura do município para dar espaço ao gigante de concreto, o BRT, mas eu guardei as sementes de algumas delas, a-há!), comecei a dar vazão a essa essência.

No começo, os contos faziam parte de um romance que estou começando a escrever agora, e visavam contar histórias de alguns personagens. Mas então surgiu Sergio Carmach em 2017 e sua pergunta provocadora: "Lucas, tem alguma obra curta pronta?. Pronto. Ele havia mexido comigo. Em outro momento, Sergio me explicou que estava iniciando uma nova editora, a Verlidelas, e que pretendia lançar inicialmente três autores, com livros curtos, de até 100 páginas e que o texto tivesse qualidade. Eu apresentei a ideia da antologia, ele solicitou uma amostra, enviei um conto (O livro que não terminei de ler), ele gostou, enviei a obra, ele aprovou. Fechamos contrato.


Momento e Ruptura
 

Desatrelei os contos do romance e hoje tenho a antologia A Alameda dos Algodões Flutuantes publicada. Esta trata de um lugar, uma alameda, onde mafumeiras que a ladeiam, promovem um estranho evento: soltam para o mundo uma substância semelhante a algodão, em um processo nomeado pelos moradores de "choro das árvores". Quando isso acontece, pessoas têm suas vidas transformadas, seja para melhor ou para pior.

Cada conto, então, traz a história de alguém que teve sua vida modificada no momento em que as árvores "choram algodão". São onze contos aos quais busquei dar nomes que representassem sua essência calcada no absurdo. Foram escolhidos com cuidado e surgiram em momentos de intensa observação do cotidiano humano.

São eles: Quando as Mafumeiras Choram Algodão; O Livro Que Não Terminei De Ler; O Momento e a Ruptura; Vitrine de Misérias; O Colecionador de Garda-chuvas; O Morador da Caixa de Papelão; O Clube da Mangueira; Nada Digno de Nota; A Torre Depois da Janela; A Disputa; O Último Voo do Zangão.

Para você que ainda não conhece a obra, seguem alguns links que podem lhe mostrar mais sobre ela:







segunda-feira, 8 de julho de 2019

[OPINIÃO] – O Sincronicídio – um romance policial de revelações transcendentais!


Olá, Prezado leitor do Cantinho da Traça, que as suas leituras sejam inumeráveis e infindas!

Hoje iniciaremos uma maratona sobre um autor baiano que tem merecido destaque no meio literário nacional. Falo do escritor Fabio Shiva, sobre quem farei três postagens relacionadas ao seu trabalho. 

Nesta primeira, estou republicando uma opinião escrita há alguns anos sobre sua primeira obra publicada, O Sincronicídio. Na segunda, colocarei uma entrevista por escrito que realizei com o autor, na qual ele falará um pouco de temas como processo de escrita, de como chegou à literatura, dentre outros. No último post, postarei uma nova opinião, desta vez sobre sua mais nova obra “Favela Gótica”, lançada pela Editora Verlidelas, em 2019.

Para começarmos a maratona, então, inicio por uma citação que achei excepcional de sua obra O Sincronicídio:

 “Para que o enredo funcione, contudo, resta ainda que alguém se apresente. Esse alguém deve representar, necessariamente, a força igual e contrária à força do herói. É preciso que exista, em resumo, o antagonista. Somente ao enfrentar um adversário é que o herói se justifica” – Fabio Shiva (O Sincronicídio; pág 22).




Com esse início de ouro, que explica bastante a profundidade do autor cuja obra comentarei agora, saúdo mais uma vez todos aqueles que o leram. Sim, pois estou falando de um autor baiano que trouxe para a literatura nacional uma obra prima digna de se tornar uma série ou um filme.

Falo aqui de O Sincronicídio (Editora Caligo, 520 pág), uma obra de puro suspense policial. Não apenas policial, esse é o grande trunfo do livro, mas também filosófico e psicológico.
Mas que obra policial é essa que promete tanto?

Narrado em primeira pessoa, o romance descreve, através da voz do vilão, um dia da atribulada vida do inspetor Alberto Teixeira. Onisciente sobre o que acontece com o protagonista, o narrador vai detalhando os conflitos vividos pelo agente da lei desde questões no trabalho até aquelas inerentes às suas relações com as mulheres, com a precisão de um atirador de elite. E faz isso exatamente porque aquele é o último dia de Alberto, do qual falará da hora que acorda à hora derradeira de sua morte.

E é assim que seu dia como policial se inicia: com uma trovoada, um café da manhã, uma sessão terapêutica com sua psicóloga (e que sessão). E com um caso escatológico de assassinato que envolve um casal em uma banheira cheia de água, resíduos fisiológicos humanos, um livro de Shakespeare e um motel barato de terceira categoria.




Se fosse apenas isso, seria somente mais um dia normal atrás de assassinos. Logo, Alberto percebe que ele e as vítimas estão envolvidos definitivamente na trama mais estranha em que a sua carreira poderia estar atrelada. Uma trama que envolve pessoas próximas a ele e moedas de cobre que quando ligadas às costas de alguém podem produzir os prazeres mais incríveis, as sensações mais genuínas que um ser humano pode experimentar. E também mortes encadeadas em uma sincronia assustadora, sexo, violência e descobertas que atormentariam os mais conceituados criminosos.

Teixeira vai descobrindo que o caso de assassinato aparentemente simples, com repercussões trágicas que se expandem pelo universo, pode estar ligado a fatos do seu passado profissional e, quem sabe, pessoal. Porém, à medida que vai se aprofundando na investigação, percebe que se metera em uma trama que vai além de Rio Santo e de sua vida. Algo muito maior. Algo que abarca o mundo.

Calcado na ideia do I ching e seus 64 hexagramas, com seus significados específicos, associado ao passeio do cavalo pelas 64 casas do tabuleiro de xadrez, sem que se repita nenhuma (o que  põe a ordem numérica dos capítulos segundo o desenrolar dos fatos ligados aos hexagramas  do I Ching), O Sincronicídio traz como diferencial exatamente a mistura entre tema policial, filosofia e religião. Uma mistura tão bem conduzida, tão eloquentemente arquitetada, que mantém a atenção do leitor ligada do começo ao fim de cada capítulo.

Por isso digo que não esperem uma história convencional. Não esperem a mesmice. Shiva conduzirá o leitor dentro do universo policial perpassando por outras temáticas muito interessantes sem fugir da trama, de uma forma que suas emoções serão instigadas e a curiosidade mantida a cada página.




Ele nos traz um pouco da cultura indiana e suas crenças moldando seu fabuloso universo, associando a história a casos verdadeiros de pesquisadores como Jagadish Chandra Bose, C. G. Jung, dentre outros, o que torna o romance verossímil e convincente sem precisar se manter “no caso nosso de cada dia”.

Além disso, Shiva nos traz personagens únicos, quase que dotados de vida própria. Eles criam uma empatia grande no leitor, que fica torcendo para saber o que acontece com cada um, do início ao fim do livro. O que mais gostei, diga-se de passagem, é o narrador da história. É claro.

Para mim esta é a obra mais inovadora do gênero policial de literatura desde O Xangô de Baker Street. O Sincronicídio traz em sua essência mais do que um thriller de tiroteios sem fim, deduções fantásticas tiradas do nada e heróis bonitões que explodem tudo (e ainda ficam com a gatona no final). Pelo contrário, a obra é um profundo mergulho no conhecimento de tecnologias interessantes, histórias verdadeiras de descobridores enevoados pelo preconceito da “ciência” cartesiana, como foi o caso de Jagadish Chandra Bose, dentre outros temas. 

A encadernação é perfeita, de qualidade. A arte final da capa, excelente. A diagramação, digna de grandes elogios. Uma produção respeitável, por fim. Cada capítulo é iniciado com um texto do I ching e é subdividido por textos que sempre se relacionam com o que vai ocorrer naquela cena. Acompanhando os textos, estão os movimentos das peças de xadrez correspondentes ao momento. Uma sacada genial do autor que agregou muito valor à obra.

Sem dúvidas, estou à espera da continuação da história, que nos deixa com o desejo de saber onde isso tudo vai parar.

Ponto para Shiva.
M.M
 

Vídeo de divulgação aqui

Sobre o autor:


FABIO SHIVA é músico, escritor e produtor cultural. Autor de “Favela Gótica” (Verlidelas, 2019) e “O Sincronicídio” (Caligo, 2013). Coautor e roteirista de “ANUNNAKI - Mensageiros do Vento”, primeira ópera rock em desenho animado produzida no Brasil.. Coordenador de diversos projetos culturais em Salvador-BA: Pé de Poesia, Doce Poesia Doce, Poesia de Botão, P.U.L.A. (Passe Um Livro Adiante), Oficina de Muita Música!, Bahia Canta Paz.