domingo, 29 de setembro de 2019

[OPINIÃO] – Vidas Secas – Graciliano Ramos


Olá, prezados degustadores de papel. Que seus livros amareleçam sempre com saúde!

Hoje estamos aqui para falar de mais uma obra–prima da literatura nacional que me impressionou bastante. A temática desenvolvida nesse livro me sensibiliza, pois traz à superfície um assunto de muita importância: a miséria humana. Mais especificamente a fome, a pobreza e a seca. 

Trato hoje do romance de Graciliano Ramos, Vidas Secas (89ª edição, 175 páginas, Editora Record), cuja leitura consegue mudar o pensamento até mesmo de alguns dos bestiais defensores da ideia imbecil de se afogarem nordestinos (imaginando-se que alguns ainda consigam refletir ou que ainda tenham alguma humanidade em si).

Bem, a obra retrata as venturas e desventuras de uma família de retirantes fugindo da seca, através do sertão. Famintos e reduzidos a um estado semisselvagem em que a brutalidade torna-se um instrumento de sobrevivência, Fabiano, sinha Vitória, Menino mais novo, Menino mais velho e Baleia arrastam-se pela caatinga em busca de algum lugar onde possam encontrar alimento, água e, principalmente, um abrigo. Talvez um trabalho.


Capa da edição Record


Movidos por seus medos e sonhos, ora estapafúrdios, ora resultado da condição na qual se encontram aprisionados, cada personagem tem um capítulo próprio seu. Neles, suas características são exploradas mais profundamente, como é o caso de Fabiano com as limitações linguísticas, dureza e visão de mundo deturpada pela miséria e carência de educação historicamente registradas no Brasil ―, que delineiam muito bem sua personalidade.

Fabiano é um homem que sonha com um lugar onde possa trabalhar, servindo a um senhor que o ponha em seu lugar de bruto, como por vezes se vê. Vive imaginando um futuro melhor para si e para a família, mas a desconfiança excessiva nutrida pela estreiteza de pensamento a que se vê aprisionado , associada a uma habilidade de comunicação limitada (reconhecida até por ele mesmo), circunscreve suas possibilidades de interação a apenas sua família. Um exemplo disso é quando vai à feira, e nela deixa de realizar compras importantes para sinha Vitória por achar que os comerciantes desejam enganá-lo.

 O capítulo de sinha Vitória mostra-a como uma batalhadora. Ela é a companheira de Fabiano nessa aventura pelo mundo, e seu maior sonho é ter uma cama de lastro de couro. Menos introvertida que o marido e mais esperta para os truques do mundo , sinha Vitória é uma mãe dura, que faz o necessário, quando é preciso. Ela pune o Menino mais novo e o Menino mais velho tão duramente quanto Fabiano e nem sequer poupa a pobre cadela Baleia quando esta a incomoda ou interfere em suas reflexões.  Sua sabedoria, muito maior que a do esposo, marca-a enquanto cerne estrutural da família, uma vez que é a ela que Fabiano confia contagens e a astúcia de lidar com as palavras em alguns momentos. Ele a admira, respeita-a como uma verdadeira matriarca capaz de gerir os sonhos da família. É a sinha Vitória que patriarca deve suas satisfações.


Arte interna da edição


O Menino mais novo e o Menino mais velho não possuem nome, aparentemente. São chamados assim do início ao fim do livro. Mal sabem falar e aparentam viver em um estado quase selvagem, como pequenos Moglis entre os porcos, os cavalos, o gado e Baleia. Estão tão fundidos a esse mundo primitivo, que chegam a beijar o focinho da cadela, em um gesto de afeição. Não têm amigos além dos animais, e a única pessoa que conhecem além dos pais é sinha Terta. São criativos, e o mistério da imaginação e das palavras os preocupa tanto quanto aos pais. Sua comunicação onomatopaica e gutural é um símbolo do que a carência de uma educação formal pode provocar a uma vítima sua. Seu maior estímulo humanizatório são o pai e a mãe, de quem tiram o modelo para o futuro.

Por fim, mas não menos marcante, vem Baleia, a cadela que é tratada como uma integrante da família. Sua maior preocupação, além de viver o momento pelo momento (meio Carpe Diem) é caçar preás. Ela chega a ter um status de algum respeito, uma vez que consegue caçar um preá e dar aos companheiros. Uma informação interessante é que ela surgiu da ideia de um conto que Ramos criou e depois se tornou um capítulo com o nome do animal. O trecho que mostra o fim de Baleia é um dos mais emocionantes a que já tive acesso na literatura. Ramos, para mim, tornou-se mais do que um mestre quando o escreveu.

Vidas Secas é uma obra de forte teor social. Suas críticas mescladas a uma descrição caricata dos habitantes do semiárido que vivem na miséria, assim como a associação a um ambiente favorável a todo tipo de desventuras, tornam esse romance em um dos melhores do estilo regionalista. O único que vi chegar a esse status foi O Quinze, de Raquel de Queiroz, sobre o qual falarei daqui a algum tempo. Nesse interim, a obra de Queiroz é menos crítica e mais pungente na descrição das misérias a que um sertanejo se vê exposto. É por isso que está entre as obras que gosto neste gênero.




Vejo a obra como básica para quem deseja escrever livros com histórias regionalistas ambientadas no sertão. Para quem gosta reflexões sobre desigualdade social ou tramas calcadas em psicologia mais profunda dos personagens é também uma boa escolha. Também é uma boa reflexão para os “afogadores de nordestinos”, uma chance para se humanizarem e amadurecerem para o “mundo dos adultos” e, quem sabe, entenderem que apenas dando a possibilidade a alguém de viver com dignidade é que poderemos ver a expressão máxima de seus potenciais. 

Sem isso, restam apenas as vidas secas.

MM

sábado, 14 de setembro de 2019

[OPINIÃO] – A Entidade – Frank de Fellita



Olá, caro leitor do Cantinho da Traça, que o bolor dos livros não se instale em suas vidas!

E a frase do dia é: “Melhor ser odiado pelo que você é, do que ser amado pelo que você não é”. André Gide

Estou aqui hoje para falar de mais um livro que mexeu comigo em meus tempos mais primitivos de leitor. Falo da obra de suspense e horror de Frank de Fellita, "A Entidade". Este post contém alguns SPOILERS!

O autor
A edição que tinha comigo era antiga, pertenceu a meu pai e foi minha  herança de literatura) até que decidi que não a leria mais e que a passaria adiante, em um sebo. Com sua capa e quarta capa  vermelhas e sem letras, a obra me interessou pelo título presente na lombada cor bege. Não cheguei a ver o nome da editora, nem naquela época me interessava por isso, de forma que posto abaixo a imagem de uma edição a título de curiosidade.

"A Entidade" traz a história de uma mulher, Carllota, que tem uma vida normal no referente aos padrões sociais ocidentais (americanos) da década de 1970. Vida "normal" até que seja destruída por eventos aparentemente surreais.

Carllota Moran, mãe de três filhos, Bill, Jullie e Kim, com 32 anos e dona de um corpo belo e desejável, se vê abordada repentinamente em sua casa por um invasor invisível, um incubus, de odor pútrido e dono de um pênis que quando a penetra lembra-lhe um “ poste áspero, brutal”. 

Uma das edições nacionais
 À medida em que o tempo passa, Carllota é estuprada mais e mais vezes pela entidade que a visita frequentemente. Beirando entre o absurdo e o ilógico, logo ela se vê questionando sua própria sanidade mental. Sua vida se torna um inferno eivado pelo medo constante de estar só em casa e receber a visita indesejada. Sem saber o que fazer, ela vai em busca de ajuda através de uma equipe de pesquisadores universitários de paranormalidade, enquanto psiquiatras procuram um diagnóstico para a sua suposta doença mental. Mas a entidade é esperta e não vai se deixar ser pega e descoberta tão facilmente pelos curiosos pesquisadores.

Longe de termos um incubus que apenas quer sexo do corpo de Carllota, temos uma entidade maligna e bruta, grosseira e monstruosa que se deleita com a dor e o sofrimento de sua vítima, enquanto esta busca desesperadamente respostas para o que está acontecendo.





Livro forte, denso e muito psicológico, de evolução lenta, por vezes até chato, "A Entidade" é um romance que nos leva a nos perguntar: E se fosse comigo? O que eu faria? Como isso é possível em nosso mundo "real"? Claro que me pareceu uma figura de linguagem (apesar de dizerem que a obra é baseada em fatos) para falar dos horrores que vivem algumas mulheres prisioneiras de seus relacionamentos com homens abusivos, machistas e sem respeito algum pelo outro, que muitas vezes sentem-se sem saída para a situação. 

A obra pode ser em especial incômoda pela forte grafia das cenas de violência sexual presentes. A forma como os fatos são deletérios a ponto de fragilizar a protagonista, deixando-a em um limiar entre a loucura e a obsessão espiritual (com chamariam os espíritas), é marcante.

Este é um livro que, se temos o mínimo de empatia pelos humanos, nos faz pensar sobre os efeitos do abuso sexual em mulheres, como alteram suas vidas e as marcas que ficam, levando-as quase sempre ao limar entre a sanidade e a loucura.

O livro é uma boa opção para quem gosta de suspense que envolve ciência e sobrenaturalidade. Só não recomendo que seja lido à noite. Menos ainda pelos mais sensíveis a descrições de violência sexual.

Sobre o Autor: Frank Paul De Felitta nasceu em 03 de agosto de 1921 e faleceu em 29 de março de 2016 e foi autor, produtor e diretor de cinema. É mais conhecido por suas obras "A Entidade" e "Audrey Rose". " A Entidade", segundo algumas referências seria baseada em fatos que ocorreram com Doris Bither (Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Frank_De_Felitta).


M.M

domingo, 18 de agosto de 2019

[OPINIÃO] ― Feliz Ano Novo Grupo de Estudos de Jung ― Uma belíssima obra de Rubem Fonseca



Olá, prezado leitor, 

Que o seu ISBN seja mais cumprido e valorizado a cada dia!

E a frase do dia é: “A iminência da morte é uma forte motivação”. Dan Brown.

Hoje estamos aqui para falar de um livro muito legal de um autor brasileiro consagrado: Rubem Fonseca. Sua obra Feliz Ano Novo publicada pela Companhia das Letras, e com 174 páginas de profunda imersão na realidade do cotidiano ―, traz 15 contos bem chocantes de puro clássico brasileiro.

É interessante saber que esta obra prima foi censurada em 1975 pelo Departamento de Polícia Federal, em pleno Regime da Ditadura Militar, e proibida de circular em território nacional até 1989, quando foi reeditada para receber a atenção que merece. Cabe ressaltar que ela marcou minha adolescência e alterou meu gosto por este mestre da literatura que é Fonseca  justamente por carregar em si as cicatrizes de um tempo ao qual nos vemos atualmente ameaçados de retornar sem prazo  para retorno ao progresso. 





Os contos tratam de temas polêmicos e diversos como relacionamento interpessoal, homoafetividade, crimes, ambição, sociopatia (algo cada vez mais pronunciado e evidente na classe média,  com a ascensão do atual governo do país) desigualdade social, dentre outros temas como política, sexo e poder. Neles, Fonseca sempre busca explorar um pouco das características psicológicas humanas com um linguajar calcado na realidade do dia a dia e com a crueza de um jornalista que viveu durante o período mais obscuro da ditadura que dominou nosso país por aproximadamente 21 anos (e talvez o faça pelos próximos tantos anos a partir de agora).

Seus personagens, moldados por um mundo neurótico, aprisionados  em uma lógica perversa e moralmente questionável, trazem marcas de uma sociedade doente em sua psique coletiva, que parece sempre à beira de desabar. A hipocrisia e a dissimulação explodem na cara do leitor ― como em outras antologias  de Fonseca ―, e nos provoca a refletirmos sobre que situação é essa em que vivemos e toleramos viver. Pode ser também entendida como um convite à mudança a partir de uma tomada de consciência do quando nossa sociedade está adoecida em sua coletividade, o que abre margens a governantes dissimulados e vulgares cujo objetivo único é atender os próprios interesses e os de uma classe sustentada/alicerçada na carne daqueles que têm sua voz calada de alguma forma. Não é à toa que a obra parece tão atual e assim se torna ainda mais atrativa , se observarmos o que vem acontecendo no nosso país nos últimos anos. A atmosfera é muito parecida, quase uma profecia do que viria a acontecer 44 anos depois da censura da obra.



O conto que mais me chamou a atenção, e que mais marcou a obra é exatamente aquele que a nomeia: Feliz Ano Novo. Este relata a atividade de um terceto de marginais que na noite de réveillon decidem realizar um assalto em uma casa de ricos. Lá eles praticam estripulias, testam teorias, comem, estupram, se divertem, matam e roubam. É mais uma forma do autor falar de maneira chocante da desigualdade social, da fome, miséria e colocá-los como precursores do crime e, talvez, dos perigos de acesso a armamento pesado. Além disso, está muito próximo com a linguagem e realidade com a qual Fonseca se conflitava frequentemente em sua profissão de jornalista.

Sem dúvida, é um livro interessante, de leitura rápida, que prende a atenção do leitor com contos curtos e que retratam a vida da sociedade brasileira de forma caricata e violenta, como não podia deixar de ser (vide obra de Leandro Karnal "Todos Contra Todos"). 

Em uma época em que se fala de um absurdo desejo de retorno da ditadura, em que as pessoas nem sequer imaginam os horrores a que podem estar expostas, este livro se constitui um bom começo para reflexões.





  É um bom livro para se ler na fila de bancos (onde li metade dele em uma tarde), e para se conhecer um grande autor de obras ilustres como "Agosto" e "A Grande Arte".

M.M.

Sobre o Autor:

José Rubem Fonseca nasceu em Juiz de Fora, em 11 de maio de 1925. Suas atividades literárias abarcam produções como contista, romancista, ensaísta e roteirista brasileiro. Faleceu no Rio de Janeiro, em 15 de abril de 2020. Foi vencedor de prêmios, dentre eles o literário Prêmio Camões, em 2003. Dentre suas obras mais conhecidas estão os romances Agosto, transformado em série pela Globo, e A Grande Arte, as antologias Feliz Ano Novo, Axilas e Outras Histórias Indecorosas, Secreções, Excreções e Desatinos, dentre outros. (Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Rubem_Fonseca)

sábado, 17 de agosto de 2019

terça-feira, 23 de julho de 2019

[LITERATURA] – Entrevista com Fabio Shiva

Olá, leitor do Cantinho da Traça!

Hoje estamos aqui para dar continuidade ao perfil do autor Fábio Shiva, que concedeu uma entrevista escrita ao blog falando um pouco de sua carreira enquanto escritor, de sua obra e de planos.

Para isso, a entrevista foi dividida em três partes: Histórico, que fala um pouco de como ele iniciou a carreira de escritor; Obra, na qual ele fala de suas obras até o momento; Literatura, parte em que Shiva nos conta um pouco de sua experiência literária e de conceitos pessoais que o norteiam.

Espero que gostem do que tem por vir.

Divirtam-se!

                                                                           ***

PARTE 1: HISTÓRICO


Cantinho da Traça: O que o inspirou a escrever?

Shiva:  Lembro claramente do momento em que descobri que queria ser um escritor. Eu tinha 11 anos e havia acabado de arrumar na estante os tesouros de minha pequena coleção recém-iniciada: alguns exemplares de Agatha Christie, outros de José de Alencar, mais um ou dois com as aventuras de Sherlock Holmes e uma dúzia de episódios da série de ficção científica Perry Rhodan. Lembro que fiquei por um longo momento contemplando aqueles livros tão queridos, sentindo muita gratidão pelas tantas emoções que eles haviam me proporcionado, e então decidi que sempre iria querer fazer parte daquela magia, daquele encantamento. Eu me inspirei a escrever motivado pela paixão da leitura.



Cantinho da Traça: Por que caminho decidiu começar a escrever?

Shiva: Comecei escrevendo letras para as músicas que eu fazia junto com meu irmão Fabrício, quando eu tinha 7 ou 8 anos. Por essa época escrevi também meus primeiros poemas. Então comecei pelo caminho duplo da Música e da Poesia. 


Cantinho da Traça: Por que escolher escrever literatura policial?

Shiva: Minha motivação maior sempre foi escrever histórias que eu gostaria de ler. Sempre fui um grande apaixonado pelo romance policial, então meu primeiro livro, “O Sincronicídio”, lançado em 2013 pela Caligo Editora, foi ao mesmo tempo uma homenagem e um mergulho nesse universo da literatura policial, com referências às principais vertentes do gênero, desde o clássico mistério do “whodunit” às truculentas cenas “noir”, passando pela escatologia contemporânea e até pelo tradicional “mistério do quarto fechado”. Um detalhe curioso é que eu acreditava que seria um escritor de romances policiais para o resto da minha vida. Contudo venho descobrindo que a Literatura é acima de tudo um exercício existencial, que propõe suas próprias demandas. Hoje procuro mais “ouvir o canto da Musa” que determinar eu mesmo o caminho que devo seguir como escritor.


Cantinho da Traça: Quando e como começou a escrever contos?

Shiva: Escrevi meu primeiro conto aos 14 anos. Chamava-se “Uma questão de princípios” e era sobre um homem de meia idade que assassinava um adolescente após uma discussão fútil ocorrida no Metrô. Infelizmente não sei o que aconteceu com esse texto, perdeu-se no tempo. Por isso considero minha estreia como contista como tendo ocorrido no livro duplo “Labirinto Circular“ / “Isso Tudo É Muito Raro", lançado em 2016 pela Cogito Editora. Esse livro teve uma origem interessante, pois nasceu da dificuldade que encontrei para publicar meu primeiro romance. Fiquei quatro anos escrevendo “O Sincronicídio”, depois levei mais dois anos buscando uma editora. Já estava me conformando em não ser publicado, quando levei uma bronca daquelas de uma amiga muito querida, Elda Araújo, que foi uma de minhas maiores incentivadoras. Ela falou algo assim: “Então você quer ser que nem Van Gogh, morrer sem que ninguém conheça o seu trabalho?” Isso despertou algo dentro de mim, acho que me arrancou da zona de conforto. Decidi escrever contos para participar de antologias, para começar a me inserir no mercado, e acabei reunindo esses doze em um livro duplo, desses em que a capa de um é a contracapa do outro. E com isso acho que liberei alguma energia interna, pois, quando menos esperava, meu romance acabou sendo publicado pela Caligo.
  





PARTE 2: OBRA


Cantinho da Traça: Pode nos falar mais sobre suas obras?

Shiva:  Até o momento publiquei dois romances. Além de “O Sincronicídio”, lancei agora em 2019 “Favela Gótica”, pela Verlidelas Editora. É basicamente uma transposição da literatura gótica, que é recheada de monstros como mortos-vivos, lobisomens e vampiros, para o universo temático de uma favela brasileira. Considero uma obra bem diferente, que poderíamos classificar como uma “distopia fantástica”, onde a trama policial aparece de forma secundária. Como já mencionei, publiquei também um livro de contos. Fora esses, atuei como organizador de um livro coletivo muito interessante, chamado “Escritores Perguntam, Escritores Respondem", um bate-papo sobre literatura entre doze escritores de vários cantos do Brasil e dos estilos mais diversos. Essa foi uma experiência tão marcante que agora está sendo revivida na forma de uma série de vídeos muito legais do site MundoEscrito. Organizei duas antologias poéticas: “Doce Poesia Doce”, junto com Ivan de Almeida (que também organizou o “Escritores...”), publicado pela Cogito em 2018, e “Poesia de Botão”, junto com Sergio Carmach, em uma bela edição que será lançada brevemente pela Verlidelas. Tive ainda a oportunidade maravilhosa de escrever, junto com meu irmão Fabrício Barretto, o roteiro do filme “ANUNNAKI– Mensageiros do Vento”, a primeira ópera rock em animação produzida no Brasil, lançada em 2016, além do livro “MANIFESTO – Mensageiros do Vento”.


Cantinho da Traça: Quais são seus planos para o futuro na literatura?

Shiva: Rapaz, são tantos, que só peço a Deus saúde e disposição para escrever tantos livros! Atualmente estou escrevendo uma espécie de “romance de não ficção” contando de forma lúdica parte da história da banda de heavy metal Imago Mortis. E também estou preparando com muito carinho um livro infantil: “Meditação para Crianças”.



Cantinho da Traça: Li “O Sincronicídio”, gostei muito e terminei o livro com uma pergunta que acho que todos aqueles que o leram se fazem: haverá continuação?

Shiva: Gratidão por sua leitura e por essa energia boa! Na verdade, a continuação de “O Sincronicídio” surgiu antes da história que é ali apresentada. Eu comecei escrevendo um outro livro, chamado “A Mais Tocada de Todos os Tempos”, mas fui progressivamente reescrevendo e recuando um pouco mais na história a cada vez, até que acabei caindo em outro livro! Eu pretendo sim retomar essa trama algum dia, mas no momento isso não é prioridade.  Foi um livro muito divertido de se escrever, mas foi também extremamente trabalhoso. Por agora, sinto vontade de experimentar coisas diferentes.



Júlio Cortázar


Cantinho da Traça: Percebo em suas obras um cunho bastante social que, ao meu ver, funciona como uma espécie de assinatura sua. Pode nos falar mais sobre isso?

Shiva: Recentemente travei contato com as maravilhosas “Aulas de Literatura” do Julio Cortázar, onde ele estabeleceu três etapas distintas em sua própria caminhada literária, com as quais me identifiquei muitíssimo. O primeiro momento, que ele chama de “estético”, é marcado pela busca de uma “arte pela arte”, pela construção de uma narrativa esmerada e repleta de qualidades literárias. Essa etapa foi determinante em meus primeiros escritos e em boa parte da estruturação de “O Sincronicídio”. O segundo momento é batizado como “histórico”, e define uma conscientização, por parte do autor, de que sua literatura existe em um contexto social, e que possui responsabilidades sociais, por assim dizer. Penso que a concepção mais profunda de “O Sincronicídio” e, principalmente, de “Favela Gótica”, foi marcada pela percepção dessa responsabilidade. Nunca desejei escrever apenas por escrever, para ocupar de forma agradável as horas ociosas do leitor. Acredito que a literatura deve entreter, deve ser interessante e divertida, mas a diversão jamais deve ser um fim em si mesma, a meta maior da literatura. Para isso já temos toda a indústria cultural. Literatura é arte, e a arte deve servir para melhorar o homem de alguma forma, libertá-lo de suas amarras psíquicas e existenciais, ajudá-lo a transcender sua mera condição animal. E é aí que chegamos ao terceiro momento descrito por Cortázar, que ele chama de “metafísico”. Ele usou outras palavras para descrever algo que hoje representa para mim o cerne de minha motivação como escritor: a literatura deve servir à Verdade. Por “Verdade”, entendo aquilo que é real, em oposição ao que é ilusório. É muito difícil falar sobre esses assuntos utilizando uma linguagem comum. Para isso, hoje acredito, é que existe a literatura.


Cantinho da Traça: O que mais você gosta em sua obra e o que acha que poderia mudar?

Shiva: Gosto muito do fato de que tento não me repetir. E poderia mudar tudo, sempre. Sinto que escrever é um aprendizado infinito. Não consigo imaginar algum momento no futuro em que eu não tenha muitíssimo a aprender.


PARTE 3 – LITERATURA

Cantinho da Traça: Já pensou em parar de escrever? Se sim, como foi? O que o manteve escrevendo?

Shiva: Sim, pensei em parar, e foi terrível! E é justamente isso o que me mantém escrevendo. Quando por algum motivo eu encerro o dia sem ter escrito, sinto-me fracassando existencialmente, traindo meus valores mais sagrados. A Literatura é a minha religião.



Cantinho da Traça: Que dificuldades você enfrenta em seu processo de escrita? Como transcende?

Shiva: Já enfrentei e enfrento as dificuldades mais comuns envolvidas no processo de escrever: a procrastinação, o bloqueio, a preguiça pura e simplesmente, os becos aparentemente sem saída. Acredito que a transcendência vem da “lição da água”, no sentido que as artes marciais e a espiritualidade dão a essa expressão: fluir, ser flexível e não rígido, buscar sempre o caminho de menor resistência, a posição mais humilde. Daí vêm a força e a grandeza da água. As dificuldades fazem parte de qualquer caminho que valha a pena, penso que devemos reconhecê-las como parte do processo, não ficar brigando muito com isso. Como diria nosso amado Jung, “tudo a que se resiste, persiste”.


Cantinho da Traça: Como você acha que um escritor deve ler?

Shiva: Como um aprendiz de feiticeiro, sempre tentando desvendar “como o truque foi feito”. Alguns livros devem ser lidos duas, três vezes ou mais. Contudo esse olhar mais técnico nunca deve suprimir o encantamento. Devemos aprender como o truque é feito e, ao mesmo tempo, continuar acreditando na magia.


Cantinho da Traça: Que dicas você daria a outras pessoas que estão pensando em começar a escrever ou que já escrevem?

Shiva: Se você sente um chamado real para escrever, é porque existe algo em você que precisa ser expresso, para o bem do mundo. Tente ouvir essa voz interna, que está querendo se expressar. Siga essa voz. Acredite nela.


Cantinho da Traça: Que orientações você dá aos autores que estão pensando em publicar?

Shiva: Hoje é muito fácil publicar, seja de forma independente ou através de uma das inúmeras editoras sob demanda que existem no mercado. Publicar digitalmente, então, é mais fácil ainda. Então o ato da publicação, em si, possui pouca relevância atualmente. Por isso minha sugestão é: não se afobe para publicar o primeiro texto que você escreveu. Pesquise, estude, observe. Isso ajudará sua intuição a decidir quando e como agir.





Cantinho da Traça: Poderia descrever um pouco como funciona seu processo criativo?


Shiva: Posso resumir meu processo criativo em uma frase, retirada das escrituras védicas: “nada do que faço sou eu quem faz”. Acredito que o artista é, na bela definição de Ezra Pound, a “antena da raça”. Então meu processo consiste em principalmente captar, escutar. Embora eu tenha consciência de que sou eu que escrevo os meus textos, não me sinto realmente o autor deles. Cada vez mais, tenho uma sensação de escrever como um ato de magia, de materialização no aqui e agora de algo que já existia em alguma outra dimensão. Percebo cada história como uma espécie de novelo de lã, e escrever é conseguir segurar a ponta desse novelo e vir puxando, lentamente, palavra por palavra, com cuidado para não partir o fio. É um processo cansativo, que exige muita concentração. Às vezes o fio se rompe e é preciso começar tudo de novo. Mas às vezes conseguimos desenrolar o novelo inteiro, e há muita felicidade nesses momentos. Depois vem a parte técnica do processo, que é burilar o texto, revisar, cortar palavras. Mas o parto de um texto é sempre algo que me enche de reverência, como um ato sagrado.



Cantinho da Traça: Pode nos falar sobre sua experiência com a Editora Verlidelas?


Shiva: Só tenho elogios e agradecimentos a fazer. A Verlidelas é uma editora pequena, mas com um coração gigante! Iniciou suas atividades há pouco tempo, mas já lançou uma boa quantidade de excelentes trabalhos, que primam pela qualidade em cada detalhe.  E o melhor de tudo é que se trata de uma Editora de verdade, que possibilita ao autor publicar seu livro sem ter que custear a edição. Não poderia ser de outro modo, tendo à frente o querido amigo Sergio Carmach, que admiro igualmente como escritor e como ser humano. Longa vida à Verlidelas!