Olá, leitor do Cantinho da Traça!
Hoje estamos aqui para dar continuidade ao perfil do autor Fábio Shiva, que concedeu uma entrevista escrita ao blog falando um pouco de sua carreira enquanto escritor, de sua obra e de planos.
Para isso, a entrevista foi dividida em três partes: Histórico, que fala um pouco de como ele iniciou a carreira de escritor; Obra, na qual ele fala de suas obras até o momento; Literatura, parte em que Shiva nos conta um pouco de sua experiência literária e de conceitos pessoais que o norteiam.
Espero que gostem do que tem por vir.
Divirtam-se!
***
PARTE 1: HISTÓRICO
Cantinho da Traça: O
que o inspirou a escrever?
Shiva: Lembro claramente do momento em
que descobri que queria ser um escritor. Eu tinha 11 anos e havia acabado de
arrumar na estante os tesouros de minha pequena coleção recém-iniciada: alguns
exemplares de Agatha Christie, outros de José de Alencar, mais um ou dois com
as aventuras de Sherlock Holmes e uma dúzia de episódios da série de ficção
científica Perry Rhodan. Lembro que fiquei por um longo momento contemplando
aqueles livros tão queridos, sentindo muita gratidão pelas tantas emoções que
eles haviam me proporcionado, e então decidi que sempre iria querer fazer parte
daquela magia, daquele encantamento. Eu me inspirei a escrever motivado pela
paixão da leitura.
Cantinho da Traça: Por
que caminho decidiu começar a escrever?
Shiva: Comecei escrevendo letras para as
músicas que eu fazia junto com meu irmão Fabrício, quando eu tinha 7 ou 8 anos.
Por essa época escrevi também meus primeiros poemas. Então comecei pelo caminho
duplo da Música e da Poesia.
Cantinho da Traça: Por
que escolher escrever literatura policial?
Shiva: Minha motivação maior sempre foi escrever histórias que eu
gostaria de ler. Sempre fui um grande apaixonado pelo romance policial, então
meu primeiro livro, “O Sincronicídio”,
lançado em 2013 pela Caligo Editora, foi ao mesmo tempo uma homenagem e um
mergulho nesse universo da literatura policial, com referências às principais
vertentes do gênero, desde o clássico mistério do “whodunit” às truculentas
cenas “noir”, passando pela escatologia contemporânea e até pelo tradicional
“mistério do quarto fechado”. Um detalhe curioso é que eu acreditava que seria
um escritor de romances policiais para o resto da minha vida. Contudo venho
descobrindo que a Literatura é acima de tudo um exercício existencial, que
propõe suas próprias demandas. Hoje procuro mais “ouvir o canto da Musa” que
determinar eu mesmo o caminho que devo seguir como escritor.
Cantinho da Traça: Quando
e como começou a escrever contos?
Shiva: Escrevi meu primeiro conto aos 14 anos. Chamava-se “Uma
questão de princípios” e era sobre um homem de meia idade que assassinava um
adolescente após uma discussão fútil ocorrida no Metrô. Infelizmente não sei o
que aconteceu com esse texto, perdeu-se no tempo. Por isso considero minha
estreia como contista como tendo ocorrido no livro duplo “Labirinto Circular“
/ “Isso Tudo É Muito Raro",
lançado em 2016 pela Cogito Editora.
Esse livro teve uma origem interessante, pois nasceu da dificuldade que encontrei
para publicar meu primeiro romance. Fiquei quatro anos escrevendo “O
Sincronicídio”, depois levei mais dois anos buscando uma editora. Já estava me
conformando em não ser publicado, quando levei uma bronca daquelas de uma amiga
muito querida, Elda Araújo, que foi uma de minhas maiores incentivadoras. Ela
falou algo assim: “Então você quer ser que nem Van Gogh, morrer sem que ninguém
conheça o seu trabalho?” Isso despertou algo dentro de mim, acho que me
arrancou da zona de conforto. Decidi escrever contos para participar de
antologias, para começar a me inserir no mercado, e acabei reunindo esses doze
em um livro duplo, desses em que a capa de um é a contracapa do outro. E com
isso acho que liberei alguma energia interna, pois,
quando menos esperava, meu romance acabou sendo publicado
pela Caligo.
PARTE 2: OBRA
Cantinho da Traça: Pode
nos falar mais sobre suas obras?
Shiva: Até o momento publiquei dois romances. Além de “O
Sincronicídio”, lancei agora em 2019 “Favela Gótica”,
pela Verlidelas Editora. É basicamente uma transposição da literatura gótica,
que é recheada de monstros como mortos-vivos, lobisomens e vampiros, para o
universo temático de uma favela brasileira. Considero uma obra bem diferente,
que poderíamos classificar como uma “distopia fantástica”, onde a trama
policial aparece de forma secundária. Como já mencionei, publiquei também um livro
de contos. Fora esses, atuei como organizador de um livro coletivo muito
interessante, chamado “Escritores Perguntam, Escritores Respondem",
um bate-papo sobre literatura entre doze escritores de vários cantos do Brasil
e dos estilos mais diversos. Essa foi uma experiência tão marcante que agora
está sendo revivida na forma de uma série de vídeos muito legais do site MundoEscrito.
Organizei duas antologias poéticas: “Doce Poesia Doce”, junto com Ivan de
Almeida (que também organizou o “Escritores...”), publicado pela Cogito em
2018, e “Poesia de Botão”, junto com Sergio Carmach, em uma bela edição que
será lançada brevemente pela Verlidelas. Tive ainda a oportunidade maravilhosa
de escrever, junto com meu irmão Fabrício Barretto, o roteiro do filme “ANUNNAKI– Mensageiros do Vento”,
a primeira ópera rock em animação produzida no Brasil, lançada em 2016, além do
livro “MANIFESTO – Mensageiros do Vento”.
Cantinho da Traça: Quais são seus planos para o futuro na literatura?
Shiva: Rapaz, são tantos, que só peço a Deus saúde e disposição
para escrever tantos livros! Atualmente estou escrevendo uma espécie de
“romance de não ficção” contando de forma lúdica parte da história da banda de
heavy metal Imago Mortis. E também estou preparando com muito carinho um livro
infantil: “Meditação para Crianças”.
Cantinho da Traça: Li “O Sincronicídio”, gostei muito e terminei o livro
com uma pergunta que acho que todos aqueles que o leram se fazem: haverá
continuação?
Shiva: Gratidão por sua leitura e por essa energia boa! Na verdade,
a continuação de “O Sincronicídio” surgiu antes da história que é ali
apresentada. Eu comecei escrevendo um outro livro, chamado “A Mais Tocada de
Todos os Tempos”, mas fui progressivamente reescrevendo e recuando um pouco
mais na história a cada vez, até que acabei caindo em outro livro! Eu pretendo
sim retomar essa trama algum dia, mas no momento isso não é prioridade. Foi um livro muito divertido de se escrever,
mas foi também extremamente trabalhoso. Por agora, sinto vontade de
experimentar coisas diferentes.
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Júlio Cortázar |
Cantinho da Traça: Percebo em suas obras um cunho bastante social que, ao
meu ver, funciona como uma espécie de assinatura sua. Pode nos falar mais sobre
isso?
Shiva: Recentemente travei contato com as maravilhosas “Aulas de
Literatura” do Julio Cortázar, onde ele estabeleceu três etapas distintas em
sua própria caminhada literária, com as quais me identifiquei muitíssimo. O
primeiro momento, que ele chama de “estético”, é marcado pela busca de uma
“arte pela arte”, pela construção de uma narrativa esmerada e repleta de
qualidades literárias. Essa etapa foi determinante em meus primeiros escritos e
em boa parte da estruturação de “O Sincronicídio”. O segundo momento é batizado
como “histórico”, e define uma conscientização, por parte do autor, de que sua
literatura existe em um contexto social, e que possui responsabilidades
sociais, por assim dizer. Penso que a concepção mais profunda de “O
Sincronicídio” e, principalmente, de “Favela Gótica”, foi marcada pela
percepção dessa responsabilidade. Nunca desejei escrever apenas por escrever,
para ocupar de forma agradável as horas ociosas do leitor. Acredito que a
literatura deve entreter, deve ser interessante e divertida, mas a diversão jamais
deve ser um fim em si mesma, a meta maior da literatura. Para isso já temos
toda a indústria cultural. Literatura é arte, e a arte deve servir para
melhorar o homem de alguma forma, libertá-lo de suas amarras psíquicas e
existenciais, ajudá-lo a transcender sua mera condição animal. E é aí que
chegamos ao terceiro momento descrito por Cortázar, que ele chama de
“metafísico”. Ele usou outras palavras para descrever algo que hoje representa
para mim o cerne de minha motivação como escritor: a literatura deve servir à
Verdade. Por “Verdade”, entendo aquilo que é real, em oposição ao que é
ilusório. É muito difícil falar sobre esses assuntos utilizando uma linguagem
comum. Para isso, hoje acredito, é que existe a literatura.
Cantinho da Traça: O que mais você gosta em sua obra e o que acha que
poderia mudar?
Shiva: Gosto muito do fato de que tento não me repetir. E poderia
mudar tudo, sempre. Sinto que escrever é um aprendizado infinito. Não consigo
imaginar algum momento no futuro em que eu não tenha muitíssimo a aprender.
PARTE 3 – LITERATURA
Cantinho da Traça: Já pensou em
parar de escrever? Se sim, como foi? O que o manteve escrevendo?
Shiva: Sim, pensei em parar, e foi terrível! E é justamente isso o
que me mantém escrevendo. Quando por algum motivo eu encerro o dia sem ter
escrito, sinto-me fracassando existencialmente, traindo meus valores mais
sagrados. A Literatura é a minha religião.
Cantinho da Traça: Que dificuldades você enfrenta em seu processo de
escrita? Como transcende?
Shiva: Já enfrentei e enfrento as dificuldades mais comuns
envolvidas no processo de escrever: a procrastinação, o bloqueio, a preguiça
pura e simplesmente, os becos aparentemente sem saída. Acredito que a
transcendência vem da “lição da água”, no sentido que as artes marciais e a
espiritualidade dão a essa expressão: fluir, ser flexível e não rígido, buscar
sempre o caminho de menor resistência, a posição mais humilde. Daí vêm a força
e a grandeza da água. As dificuldades fazem parte de qualquer caminho que valha
a pena, penso que devemos reconhecê-las como parte do processo, não ficar
brigando muito com isso. Como diria nosso amado Jung, “tudo a que se resiste, persiste”.
Cantinho da Traça: Como você acha que um escritor deve ler?
Shiva: Como um aprendiz de feiticeiro, sempre tentando desvendar
“como o truque foi feito”. Alguns livros devem ser lidos duas, três vezes ou
mais. Contudo esse olhar mais técnico nunca deve suprimir o encantamento.
Devemos aprender como o truque é feito e, ao mesmo tempo, continuar acreditando
na magia.
Cantinho da Traça: Que dicas você daria a outras pessoas que estão
pensando em começar a escrever ou que já escrevem?
Shiva: Se você sente um chamado real para escrever, é porque existe
algo em você que precisa ser expresso, para o bem do mundo. Tente ouvir essa voz interna, que está
querendo se expressar. Siga essa voz. Acredite nela.
Cantinho da Traça: Que orientações você dá aos autores que estão pensando
em publicar?
Shiva: Hoje é muito fácil publicar, seja de forma independente ou
através de uma das inúmeras editoras sob demanda que existem no mercado.
Publicar digitalmente, então, é mais fácil ainda. Então o ato da publicação, em
si, possui pouca relevância atualmente. Por isso minha sugestão é: não se afobe
para publicar o primeiro texto que você escreveu. Pesquise, estude, observe.
Isso ajudará sua intuição a decidir quando e como agir.
Cantinho da Traça: Poderia descrever um pouco como funciona seu processo
criativo?
Shiva: Posso resumir meu processo criativo em uma frase, retirada
das escrituras védicas: “nada do que faço sou eu quem faz”. Acredito que o
artista é, na bela definição de Ezra Pound, a “antena da raça”. Então meu
processo consiste em principalmente captar, escutar. Embora eu tenha
consciência de que sou eu que escrevo os meus textos, não me sinto realmente o
autor deles. Cada vez mais, tenho uma sensação de escrever como um ato de
magia, de materialização no aqui e agora de algo que já existia em alguma outra
dimensão. Percebo cada história como uma espécie de novelo de lã, e escrever é
conseguir segurar a ponta desse novelo e vir puxando, lentamente, palavra por
palavra, com cuidado para não partir o fio. É um processo cansativo, que exige
muita concentração. Às vezes o fio se rompe e é preciso começar tudo de novo.
Mas às vezes conseguimos desenrolar o novelo inteiro, e há muita felicidade
nesses momentos. Depois vem a parte técnica do processo, que é burilar o texto,
revisar, cortar palavras. Mas o parto de um texto é sempre algo que me enche de
reverência, como um ato sagrado.
Cantinho da Traça: Pode nos falar sobre sua experiência com a Editora Verlidelas?
Shiva: Só tenho elogios e agradecimentos a fazer. A Verlidelas é uma
editora pequena, mas com um coração gigante! Iniciou suas atividades há pouco
tempo, mas já lançou uma boa quantidade de excelentes trabalhos, que primam
pela qualidade em cada detalhe. E o
melhor de tudo é que se trata de uma Editora de verdade, que possibilita ao
autor publicar seu livro sem ter que custear a edição. Não poderia ser de outro
modo, tendo à frente o querido amigo Sergio Carmach, que admiro igualmente como
escritor e como ser humano. Longa vida à Verlidelas!