domingo, 29 de setembro de 2019

[OPINIÃO] – Vidas Secas – Graciliano Ramos


Olá, prezados degustadores de papel. Que seus livros amareleçam sempre com saúde!

Hoje estamos aqui para falar de mais uma obra–prima da literatura nacional que me impressionou bastante. A temática desenvolvida nesse livro me sensibiliza, pois traz à superfície um assunto de muita importância: a miséria humana. Mais especificamente a fome, a pobreza e a seca. 

Trato hoje do romance de Graciliano Ramos, Vidas Secas (89ª edição, 175 páginas, Editora Record), cuja leitura consegue mudar o pensamento até mesmo de alguns dos bestiais defensores da ideia imbecil de se afogarem nordestinos (imaginando-se que alguns ainda consigam refletir ou que ainda tenham alguma humanidade em si).

Bem, a obra retrata as venturas e desventuras de uma família de retirantes fugindo da seca, através do sertão. Famintos e reduzidos a um estado semisselvagem em que a brutalidade torna-se um instrumento de sobrevivência, Fabiano, sinha Vitória, Menino mais novo, Menino mais velho e Baleia arrastam-se pela caatinga em busca de algum lugar onde possam encontrar alimento, água e, principalmente, um abrigo. Talvez um trabalho.


Capa da edição Record


Movidos por seus medos e sonhos, ora estapafúrdios, ora resultado da condição na qual se encontram aprisionados, cada personagem tem um capítulo próprio seu. Neles, suas características são exploradas mais profundamente, como é o caso de Fabiano com as limitações linguísticas, dureza e visão de mundo deturpada pela miséria e carência de educação historicamente registradas no Brasil ―, que delineiam muito bem sua personalidade.

Fabiano é um homem que sonha com um lugar onde possa trabalhar, servindo a um senhor que o ponha em seu lugar de bruto, como por vezes se vê. Vive imaginando um futuro melhor para si e para a família, mas a desconfiança excessiva nutrida pela estreiteza de pensamento a que se vê aprisionado , associada a uma habilidade de comunicação limitada (reconhecida até por ele mesmo), circunscreve suas possibilidades de interação a apenas sua família. Um exemplo disso é quando vai à feira, e nela deixa de realizar compras importantes para sinha Vitória por achar que os comerciantes desejam enganá-lo.

 O capítulo de sinha Vitória mostra-a como uma batalhadora. Ela é a companheira de Fabiano nessa aventura pelo mundo, e seu maior sonho é ter uma cama de lastro de couro. Menos introvertida que o marido e mais esperta para os truques do mundo , sinha Vitória é uma mãe dura, que faz o necessário, quando é preciso. Ela pune o Menino mais novo e o Menino mais velho tão duramente quanto Fabiano e nem sequer poupa a pobre cadela Baleia quando esta a incomoda ou interfere em suas reflexões.  Sua sabedoria, muito maior que a do esposo, marca-a enquanto cerne estrutural da família, uma vez que é a ela que Fabiano confia contagens e a astúcia de lidar com as palavras em alguns momentos. Ele a admira, respeita-a como uma verdadeira matriarca capaz de gerir os sonhos da família. É a sinha Vitória que patriarca deve suas satisfações.


Arte interna da edição


O Menino mais novo e o Menino mais velho não possuem nome, aparentemente. São chamados assim do início ao fim do livro. Mal sabem falar e aparentam viver em um estado quase selvagem, como pequenos Moglis entre os porcos, os cavalos, o gado e Baleia. Estão tão fundidos a esse mundo primitivo, que chegam a beijar o focinho da cadela, em um gesto de afeição. Não têm amigos além dos animais, e a única pessoa que conhecem além dos pais é sinha Terta. São criativos, e o mistério da imaginação e das palavras os preocupa tanto quanto aos pais. Sua comunicação onomatopaica e gutural é um símbolo do que a carência de uma educação formal pode provocar a uma vítima sua. Seu maior estímulo humanizatório são o pai e a mãe, de quem tiram o modelo para o futuro.

Por fim, mas não menos marcante, vem Baleia, a cadela que é tratada como uma integrante da família. Sua maior preocupação, além de viver o momento pelo momento (meio Carpe Diem) é caçar preás. Ela chega a ter um status de algum respeito, uma vez que consegue caçar um preá e dar aos companheiros. Uma informação interessante é que ela surgiu da ideia de um conto que Ramos criou e depois se tornou um capítulo com o nome do animal. O trecho que mostra o fim de Baleia é um dos mais emocionantes a que já tive acesso na literatura. Ramos, para mim, tornou-se mais do que um mestre quando o escreveu.

Vidas Secas é uma obra de forte teor social. Suas críticas mescladas a uma descrição caricata dos habitantes do semiárido que vivem na miséria, assim como a associação a um ambiente favorável a todo tipo de desventuras, tornam esse romance em um dos melhores do estilo regionalista. O único que vi chegar a esse status foi O Quinze, de Raquel de Queiroz, sobre o qual falarei daqui a algum tempo. Nesse interim, a obra de Queiroz é menos crítica e mais pungente na descrição das misérias a que um sertanejo se vê exposto. É por isso que está entre as obras que gosto neste gênero.




Vejo a obra como básica para quem deseja escrever livros com histórias regionalistas ambientadas no sertão. Para quem gosta reflexões sobre desigualdade social ou tramas calcadas em psicologia mais profunda dos personagens é também uma boa escolha. Também é uma boa reflexão para os “afogadores de nordestinos”, uma chance para se humanizarem e amadurecerem para o “mundo dos adultos” e, quem sabe, entenderem que apenas dando a possibilidade a alguém de viver com dignidade é que poderemos ver a expressão máxima de seus potenciais. 

Sem isso, restam apenas as vidas secas.

MM

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