Olá, prezados degustadores de papel. Que seus livros
amareleçam sempre com saúde!
Hoje estamos aqui para falar de
mais uma obra–prima da literatura nacional que me impressionou bastante. A
temática desenvolvida nesse livro me sensibiliza, pois traz à superfície um
assunto de muita importância: a miséria humana. Mais especificamente a fome, a
pobreza e a seca.
Trato hoje do romance de Graciliano Ramos, Vidas Secas (89ª edição, 175 páginas, Editora Record), cuja leitura
consegue mudar o pensamento até mesmo de alguns dos bestiais defensores da
ideia imbecil de se afogarem nordestinos (imaginando-se que alguns ainda
consigam refletir ou que ainda tenham alguma humanidade em si).
Bem, a obra retrata as venturas e
desventuras de uma família de retirantes fugindo da seca, através do sertão.
Famintos e reduzidos a um estado semisselvagem em que a brutalidade torna-se um
instrumento de sobrevivência, Fabiano, sinha Vitória, Menino mais novo, Menino
mais velho e Baleia arrastam-se pela caatinga em busca de algum lugar onde
possam encontrar alimento, água e, principalmente, um abrigo. Talvez um
trabalho.
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Capa da edição Record |
Movidos por seus medos e sonhos,
ora estapafúrdios, ora resultado da condição na qual se encontram aprisionados,
cada personagem tem um capítulo próprio seu. Neles, suas características são
exploradas mais profundamente, como é o caso de Fabiano com as limitações
linguísticas, dureza e visão de mundo deturpada pela miséria e carência de
educação ―
historicamente registradas no Brasil ―, que delineiam muito bem sua
personalidade.
Fabiano é um homem que sonha com
um lugar onde possa trabalhar, servindo a um senhor que o ponha em seu lugar de
bruto, como por vezes se vê. Vive imaginando um futuro melhor para si e para a
família, mas a desconfiança excessiva ― nutrida pela estreiteza de pensamento
a que se vê aprisionado ―, associada a uma habilidade de comunicação limitada (reconhecida
até por ele mesmo), circunscreve suas possibilidades de interação a apenas sua
família. Um exemplo disso é quando vai à feira, e nela deixa de realizar
compras importantes para sinha Vitória por achar que os comerciantes desejam
enganá-lo.
O capítulo de sinha Vitória mostra-a como uma
batalhadora. Ela é a companheira de Fabiano nessa aventura pelo mundo, e seu
maior sonho é ter uma cama de lastro de couro. Menos introvertida que o marido ― e
mais esperta para os truques do mundo ―, sinha Vitória é uma mãe dura, que
faz o necessário, quando é preciso. Ela pune o Menino mais novo e o Menino mais
velho tão duramente quanto Fabiano e nem sequer poupa a pobre cadela Baleia quando
esta a incomoda ou interfere em suas reflexões. Sua sabedoria, muito maior que a do esposo,
marca-a enquanto cerne estrutural da família, uma vez que é a ela que Fabiano
confia contagens e a astúcia de lidar com as palavras em alguns momentos. Ele a
admira, respeita-a como uma verdadeira matriarca capaz de gerir os sonhos da
família. É a sinha Vitória que patriarca deve suas satisfações.
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Arte interna da edição |
O Menino mais novo e o Menino
mais velho não possuem nome, aparentemente. São chamados assim do início ao fim
do livro. Mal sabem falar e aparentam viver em um estado quase selvagem, como
pequenos Moglis entre os porcos, os cavalos, o gado e Baleia. Estão tão
fundidos a esse mundo primitivo, que chegam a beijar o focinho da cadela, em um
gesto de afeição. Não têm amigos além dos animais, e a única pessoa que
conhecem além dos pais é sinha Terta. São criativos, e o mistério da imaginação
e das palavras os preocupa tanto quanto aos pais. Sua comunicação onomatopaica
e gutural é um símbolo do que a carência de uma educação formal pode provocar a
uma vítima sua. Seu maior estímulo humanizatório são o pai e a mãe, de quem
tiram o modelo para o futuro.
Por fim, mas não menos marcante,
vem Baleia, a cadela que é tratada como uma integrante da família. Sua maior
preocupação, além de viver o momento pelo momento (meio Carpe Diem) é caçar preás.
Ela chega a ter um status de algum respeito, uma vez que consegue caçar um preá
e dar aos companheiros. Uma informação interessante é que ela surgiu da ideia
de um conto que Ramos criou e depois se tornou um capítulo com o nome do
animal. O trecho que mostra o fim de Baleia é um dos mais emocionantes a que já
tive acesso na literatura. Ramos, para mim, tornou-se mais do que um mestre
quando o escreveu.
Vidas Secas é uma obra de forte teor social. Suas críticas mescladas
a uma descrição caricata dos habitantes do semiárido que vivem na miséria, assim
como a associação a um ambiente favorável a todo tipo de desventuras, tornam
esse romance em um dos melhores do estilo regionalista. O único que vi chegar a
esse status foi O Quinze, de Raquel de Queiroz, sobre o qual falarei
daqui a algum tempo. Nesse interim, a obra de Queiroz é menos crítica e mais
pungente na descrição das misérias a que um sertanejo se vê exposto. É por isso
que está entre as obras que gosto neste gênero.
Vejo a obra como básica para quem
deseja escrever livros com histórias regionalistas ambientadas no sertão. Para
quem gosta reflexões sobre desigualdade social ou tramas calcadas em psicologia
mais profunda dos personagens é também uma boa escolha. Também é uma boa
reflexão para os “afogadores de nordestinos”, uma chance para se humanizarem e
amadurecerem para o “mundo dos adultos” e, quem sabe, entenderem que apenas
dando a possibilidade a alguém de viver com dignidade é que poderemos ver a
expressão máxima de seus potenciais.
Sem isso, restam apenas as vidas
secas.
MM