sábado, 13 de junho de 2020

[PENSAMENTOS E DICAS] − Enrique J. Poncela


"O que se lê sem esforço foi escrito com muitas dificuldades". 

 Enrique J. Poncela (1901-1952),  Escritor.

domingo, 29 de setembro de 2019

[OPINIÃO] – Vidas Secas – Graciliano Ramos


Olá, prezados degustadores de papel. Que seus livros amareleçam sempre com saúde!

Hoje estamos aqui para falar de mais uma obra–prima da literatura nacional que me impressionou bastante. A temática desenvolvida nesse livro me sensibiliza, pois traz à superfície um assunto de muita importância: a miséria humana. Mais especificamente a fome, a pobreza e a seca. 

Trato hoje do romance de Graciliano Ramos, Vidas Secas (89ª edição, 175 páginas, Editora Record), cuja leitura consegue mudar o pensamento até mesmo de alguns dos bestiais defensores da ideia imbecil de se afogarem nordestinos (imaginando-se que alguns ainda consigam refletir ou que ainda tenham alguma humanidade em si).

Bem, a obra retrata as venturas e desventuras de uma família de retirantes fugindo da seca, através do sertão. Famintos e reduzidos a um estado semisselvagem em que a brutalidade torna-se um instrumento de sobrevivência, Fabiano, sinha Vitória, Menino mais novo, Menino mais velho e Baleia arrastam-se pela caatinga em busca de algum lugar onde possam encontrar alimento, água e, principalmente, um abrigo. Talvez um trabalho.


Capa da edição Record


Movidos por seus medos e sonhos, ora estapafúrdios, ora resultado da condição na qual se encontram aprisionados, cada personagem tem um capítulo próprio seu. Neles, suas características são exploradas mais profundamente, como é o caso de Fabiano com as limitações linguísticas, dureza e visão de mundo deturpada pela miséria e carência de educação historicamente registradas no Brasil ―, que delineiam muito bem sua personalidade.

Fabiano é um homem que sonha com um lugar onde possa trabalhar, servindo a um senhor que o ponha em seu lugar de bruto, como por vezes se vê. Vive imaginando um futuro melhor para si e para a família, mas a desconfiança excessiva nutrida pela estreiteza de pensamento a que se vê aprisionado , associada a uma habilidade de comunicação limitada (reconhecida até por ele mesmo), circunscreve suas possibilidades de interação a apenas sua família. Um exemplo disso é quando vai à feira, e nela deixa de realizar compras importantes para sinha Vitória por achar que os comerciantes desejam enganá-lo.

 O capítulo de sinha Vitória mostra-a como uma batalhadora. Ela é a companheira de Fabiano nessa aventura pelo mundo, e seu maior sonho é ter uma cama de lastro de couro. Menos introvertida que o marido e mais esperta para os truques do mundo , sinha Vitória é uma mãe dura, que faz o necessário, quando é preciso. Ela pune o Menino mais novo e o Menino mais velho tão duramente quanto Fabiano e nem sequer poupa a pobre cadela Baleia quando esta a incomoda ou interfere em suas reflexões.  Sua sabedoria, muito maior que a do esposo, marca-a enquanto cerne estrutural da família, uma vez que é a ela que Fabiano confia contagens e a astúcia de lidar com as palavras em alguns momentos. Ele a admira, respeita-a como uma verdadeira matriarca capaz de gerir os sonhos da família. É a sinha Vitória que patriarca deve suas satisfações.


Arte interna da edição


O Menino mais novo e o Menino mais velho não possuem nome, aparentemente. São chamados assim do início ao fim do livro. Mal sabem falar e aparentam viver em um estado quase selvagem, como pequenos Moglis entre os porcos, os cavalos, o gado e Baleia. Estão tão fundidos a esse mundo primitivo, que chegam a beijar o focinho da cadela, em um gesto de afeição. Não têm amigos além dos animais, e a única pessoa que conhecem além dos pais é sinha Terta. São criativos, e o mistério da imaginação e das palavras os preocupa tanto quanto aos pais. Sua comunicação onomatopaica e gutural é um símbolo do que a carência de uma educação formal pode provocar a uma vítima sua. Seu maior estímulo humanizatório são o pai e a mãe, de quem tiram o modelo para o futuro.

Por fim, mas não menos marcante, vem Baleia, a cadela que é tratada como uma integrante da família. Sua maior preocupação, além de viver o momento pelo momento (meio Carpe Diem) é caçar preás. Ela chega a ter um status de algum respeito, uma vez que consegue caçar um preá e dar aos companheiros. Uma informação interessante é que ela surgiu da ideia de um conto que Ramos criou e depois se tornou um capítulo com o nome do animal. O trecho que mostra o fim de Baleia é um dos mais emocionantes a que já tive acesso na literatura. Ramos, para mim, tornou-se mais do que um mestre quando o escreveu.

Vidas Secas é uma obra de forte teor social. Suas críticas mescladas a uma descrição caricata dos habitantes do semiárido que vivem na miséria, assim como a associação a um ambiente favorável a todo tipo de desventuras, tornam esse romance em um dos melhores do estilo regionalista. O único que vi chegar a esse status foi O Quinze, de Raquel de Queiroz, sobre o qual falarei daqui a algum tempo. Nesse interim, a obra de Queiroz é menos crítica e mais pungente na descrição das misérias a que um sertanejo se vê exposto. É por isso que está entre as obras que gosto neste gênero.




Vejo a obra como básica para quem deseja escrever livros com histórias regionalistas ambientadas no sertão. Para quem gosta reflexões sobre desigualdade social ou tramas calcadas em psicologia mais profunda dos personagens é também uma boa escolha. Também é uma boa reflexão para os “afogadores de nordestinos”, uma chance para se humanizarem e amadurecerem para o “mundo dos adultos” e, quem sabe, entenderem que apenas dando a possibilidade a alguém de viver com dignidade é que poderemos ver a expressão máxima de seus potenciais. 

Sem isso, restam apenas as vidas secas.

MM

sábado, 14 de setembro de 2019

[OPINIÃO] – A Entidade – Frank de Fellita



Olá, caro leitor do Cantinho da Traça, que o bolor dos livros não se instale em suas vidas!

E a frase do dia é: “Melhor ser odiado pelo que você é, do que ser amado pelo que você não é”. André Gide

Estou aqui hoje para falar de mais um livro que mexeu comigo em meus tempos mais primitivos de leitor. Falo da obra de suspense e horror de Frank de Fellita, "A Entidade". Este post contém alguns SPOILERS!

O autor
A edição que tinha comigo era antiga, pertenceu a meu pai e foi minha  herança de literatura) até que decidi que não a leria mais e que a passaria adiante, em um sebo. Com sua capa e quarta capa  vermelhas e sem letras, a obra me interessou pelo título presente na lombada cor bege. Não cheguei a ver o nome da editora, nem naquela época me interessava por isso, de forma que posto abaixo a imagem de uma edição a título de curiosidade.

"A Entidade" traz a história de uma mulher, Carllota, que tem uma vida normal no referente aos padrões sociais ocidentais (americanos) da década de 1970. Vida "normal" até que seja destruída por eventos aparentemente surreais.

Carllota Moran, mãe de três filhos, Bill, Jullie e Kim, com 32 anos e dona de um corpo belo e desejável, se vê abordada repentinamente em sua casa por um invasor invisível, um incubus, de odor pútrido e dono de um pênis que quando a penetra lembra-lhe um “ poste áspero, brutal”. 

Uma das edições nacionais
 À medida em que o tempo passa, Carllota é estuprada mais e mais vezes pela entidade que a visita frequentemente. Beirando entre o absurdo e o ilógico, logo ela se vê questionando sua própria sanidade mental. Sua vida se torna um inferno eivado pelo medo constante de estar só em casa e receber a visita indesejada. Sem saber o que fazer, ela vai em busca de ajuda através de uma equipe de pesquisadores universitários de paranormalidade, enquanto psiquiatras procuram um diagnóstico para a sua suposta doença mental. Mas a entidade é esperta e não vai se deixar ser pega e descoberta tão facilmente pelos curiosos pesquisadores.

Longe de termos um incubus que apenas quer sexo do corpo de Carllota, temos uma entidade maligna e bruta, grosseira e monstruosa que se deleita com a dor e o sofrimento de sua vítima, enquanto esta busca desesperadamente respostas para o que está acontecendo.





Livro forte, denso e muito psicológico, de evolução lenta, por vezes até chato, "A Entidade" é um romance que nos leva a nos perguntar: E se fosse comigo? O que eu faria? Como isso é possível em nosso mundo "real"? Claro que me pareceu uma figura de linguagem (apesar de dizerem que a obra é baseada em fatos) para falar dos horrores que vivem algumas mulheres prisioneiras de seus relacionamentos com homens abusivos, machistas e sem respeito algum pelo outro, que muitas vezes sentem-se sem saída para a situação. 

A obra pode ser em especial incômoda pela forte grafia das cenas de violência sexual presentes. A forma como os fatos são deletérios a ponto de fragilizar a protagonista, deixando-a em um limiar entre a loucura e a obsessão espiritual (com chamariam os espíritas), é marcante.

Este é um livro que, se temos o mínimo de empatia pelos humanos, nos faz pensar sobre os efeitos do abuso sexual em mulheres, como alteram suas vidas e as marcas que ficam, levando-as quase sempre ao limar entre a sanidade e a loucura.

O livro é uma boa opção para quem gosta de suspense que envolve ciência e sobrenaturalidade. Só não recomendo que seja lido à noite. Menos ainda pelos mais sensíveis a descrições de violência sexual.

Sobre o Autor: Frank Paul De Felitta nasceu em 03 de agosto de 1921 e faleceu em 29 de março de 2016 e foi autor, produtor e diretor de cinema. É mais conhecido por suas obras "A Entidade" e "Audrey Rose". " A Entidade", segundo algumas referências seria baseada em fatos que ocorreram com Doris Bither (Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Frank_De_Felitta).


M.M

domingo, 18 de agosto de 2019

[OPINIÃO] ― Feliz Ano Novo Grupo de Estudos de Jung ― Uma belíssima obra de Rubem Fonseca



Olá, prezado leitor, 

Que o seu ISBN seja mais cumprido e valorizado a cada dia!

E a frase do dia é: “A iminência da morte é uma forte motivação”. Dan Brown.

Hoje estamos aqui para falar de um livro muito legal de um autor brasileiro consagrado: Rubem Fonseca. Sua obra Feliz Ano Novo publicada pela Companhia das Letras, e com 174 páginas de profunda imersão na realidade do cotidiano ―, traz 15 contos bem chocantes de puro clássico brasileiro.

É interessante saber que esta obra prima foi censurada em 1975 pelo Departamento de Polícia Federal, em pleno Regime da Ditadura Militar, e proibida de circular em território nacional até 1989, quando foi reeditada para receber a atenção que merece. Cabe ressaltar que ela marcou minha adolescência e alterou meu gosto por este mestre da literatura que é Fonseca  justamente por carregar em si as cicatrizes de um tempo ao qual nos vemos atualmente ameaçados de retornar sem prazo  para retorno ao progresso. 





Os contos tratam de temas polêmicos e diversos como relacionamento interpessoal, homoafetividade, crimes, ambição, sociopatia (algo cada vez mais pronunciado e evidente na classe média,  com a ascensão do atual governo do país) desigualdade social, dentre outros temas como política, sexo e poder. Neles, Fonseca sempre busca explorar um pouco das características psicológicas humanas com um linguajar calcado na realidade do dia a dia e com a crueza de um jornalista que viveu durante o período mais obscuro da ditadura que dominou nosso país por aproximadamente 21 anos (e talvez o faça pelos próximos tantos anos a partir de agora).

Seus personagens, moldados por um mundo neurótico, aprisionados  em uma lógica perversa e moralmente questionável, trazem marcas de uma sociedade doente em sua psique coletiva, que parece sempre à beira de desabar. A hipocrisia e a dissimulação explodem na cara do leitor ― como em outras antologias  de Fonseca ―, e nos provoca a refletirmos sobre que situação é essa em que vivemos e toleramos viver. Pode ser também entendida como um convite à mudança a partir de uma tomada de consciência do quando nossa sociedade está adoecida em sua coletividade, o que abre margens a governantes dissimulados e vulgares cujo objetivo único é atender os próprios interesses e os de uma classe sustentada/alicerçada na carne daqueles que têm sua voz calada de alguma forma. Não é à toa que a obra parece tão atual e assim se torna ainda mais atrativa , se observarmos o que vem acontecendo no nosso país nos últimos anos. A atmosfera é muito parecida, quase uma profecia do que viria a acontecer 44 anos depois da censura da obra.



O conto que mais me chamou a atenção, e que mais marcou a obra é exatamente aquele que a nomeia: Feliz Ano Novo. Este relata a atividade de um terceto de marginais que na noite de réveillon decidem realizar um assalto em uma casa de ricos. Lá eles praticam estripulias, testam teorias, comem, estupram, se divertem, matam e roubam. É mais uma forma do autor falar de maneira chocante da desigualdade social, da fome, miséria e colocá-los como precursores do crime e, talvez, dos perigos de acesso a armamento pesado. Além disso, está muito próximo com a linguagem e realidade com a qual Fonseca se conflitava frequentemente em sua profissão de jornalista.

Sem dúvida, é um livro interessante, de leitura rápida, que prende a atenção do leitor com contos curtos e que retratam a vida da sociedade brasileira de forma caricata e violenta, como não podia deixar de ser (vide obra de Leandro Karnal "Todos Contra Todos"). 

Em uma época em que se fala de um absurdo desejo de retorno da ditadura, em que as pessoas nem sequer imaginam os horrores a que podem estar expostas, este livro se constitui um bom começo para reflexões.





  É um bom livro para se ler na fila de bancos (onde li metade dele em uma tarde), e para se conhecer um grande autor de obras ilustres como "Agosto" e "A Grande Arte".

M.M.

Sobre o Autor:

José Rubem Fonseca nasceu em Juiz de Fora, em 11 de maio de 1925. Suas atividades literárias abarcam produções como contista, romancista, ensaísta e roteirista brasileiro. Faleceu no Rio de Janeiro, em 15 de abril de 2020. Foi vencedor de prêmios, dentre eles o literário Prêmio Camões, em 2003. Dentre suas obras mais conhecidas estão os romances Agosto, transformado em série pela Globo, e A Grande Arte, as antologias Feliz Ano Novo, Axilas e Outras Histórias Indecorosas, Secreções, Excreções e Desatinos, dentre outros. (Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Rubem_Fonseca)